quinta-feira, 15 de outubro de 2009

A Arca de Noé e a Liberdade Espiritual

Texto de Dudu Lopes

Noe e arca.jpg

NOÉ FOI um homem muito especial, que salvou a humanidade de um dilúvio enviado por Deus, salvou várias espécies de animais. Há muita dúvida sobre a existência real da arca de Noé, uns acreditam e outros rejeitam a história. Expedições científicas foram enviadas ao monte Ararat para descobrir traços da arca, pesquisas históricas e geológicas foram feitas para comprovar se existiram ou não, o dilúvio, Noé e sua arca.

Noé Não Move Moinhos

E eu pergunto: e daí?

Que diferença faz pra alguém se a arca de Noé existiu ou não existiu? Se Noé e sua arca existiram devem ter sido muito importantes para as pessoas da época mas, pra mim e pra você, são águas passadas.

Quem se preocupa com baboseiras como a existência ou não da arca de Noé ou se a história do Ramayana realmente aconteceu, pode estar sofrendo de monotonia ou, o que é mais freqüente, de falta de liberdade espiritual.

A liberdade espiritual requer um grande, na verdade, um completo desprendimento de tudo aquilo que não é exclusivamente útil e pessoal. Espiritualmente, a gente precisa se preocupar com o autocontrole, com a atenção nas situações e em si mesmo, com a manipulação da mente inferior para que não interfira com a vida espiritual, com a atenção na saúde e na honestidade em relação às necessidades materiais, e tantas outras coisas que fazem parte da vida espiritual levada com seriedade.

E, diante de todas essas preocupações, quem realmente tem tempo, energia e paciência pra se preocupar com inutilidades como a arca de Noé?

Essas histórias deveriam ser tomadas como alegorias e somente isso. As alegorias são muito importantes para se delinear o caminho turvo da vida; quem ainda não passou por um dilúvio na vida (expresso em crises financeiras, de saúde, de segurança, emocionais ou espirituais, por exemplo) pode se beneficiar das alegorias como a de Noé. Ela expressa, como nos contos de fadas, verdades complexas sobre como construir uma personalidade segura, masculina e feminina, humana e animal, para navegar por sobre a crise, e induz a mente a agir de acordo.

Dilúvio Sem Graça

Mas depois que se viveu o próprio dilúvio, o dilúvio de Noé perde a graça. Ou, pelo menos, deveria perder. O endeusamento de coisas que não são Deus propriamente, mas apenas linhas indicativas que indicam um caminho, é um erro que engessa o caminho espiritual.

No começo da minha vida espiritual, durante as minhas práticas de japa (meditação pela repetição de um nome de Deus ou um mantra), sentia os maiores benefícios com o nome de Rama. Como, na época, não tinha acesso à informação, nem conhecia a história de Rama, nunca tinha nem mesmo visto uma imagem de Rama, tudo o que conhecia era a palavra "rama" e o fato de Gandhi ter repetido o nome de Rama ao morrer, o que é sinal de santidade na cultura Hindu, a palavra e sua energia era tudo o que eu percebia.

Mais tarde, quando conheci a história de Rama, achei banal, pois não vi ali o Rama que "via" em minha meditação. O nome de Rama e Rama eram diferentes, na minha experiência.

Quando adquiri o Ramacharitamanasa, um livro clássico que conta a história de Rama, uma frase do autor resumiu toda a minha experiência: "Rama e o nome de Rama são diferentes, e o nome de Rama é mais poderoso que Rama".

Foi uma das mais belas experiências espirituais que tive, levando em consideração o fato de que sou uma pessoa comum e sem elevação espiritual, acredito que foi uma dádiva para adoçar a boca de um devoto. E funcionou.

E funcionou também como uma lição de que linhas indicativas - a história de Rama, por exemplo - não é o mesmo que Deus. Eu não preciso de livros pra expor minhas palavras, Deus também não precisa, dizer que um livro é a palavra de Deus, seja ele a Bíblia ou o Bhagavad Gita, é confundir o CD de um artista com sua apresentação ao vivo.

Participação e Torcida

Muitas pessoas confundem participação com torcida. A gente deve participar de um caminho espiritual e não torcer por ele. Criticar outras religiões que não a própria não é ser um participante de sua religião, é ser um torcedor; criticar o caminho espiritual alheio em comparação ao próprio é ser torcedor - eu contra o outro - e não participante - eu comigo mesmo.

Durante muitos anos tive o defeito de criticar o caminho espiritual alheio, tomando esse hábito como uma virtude, e só recentemente a ficha caiu e luto contra essa deficiência. Umas pessoas precisam de atividades espirituais em grupo, eu não; umas pessoas precisam de músicas espirituais para se sentirem mais motivadas, eu não; umas pessoas precisam de acreditar somente na própria religião e negar todas as demais, muitos de nós não precisam.

Mas isso não significa que eu ou nós que seguimos caminhos diferentes sejamos superiores ou inferiores. Todos os caminhos espirituais são perfeitamente válidos desde que não sejam tomados como verdades absolutas. O enrijecimento da minha estrutura me causou muitos problemas e a minha atitude compreensiva em relação ao caminho alheio veio da necessidade de criticar o meu próprio caminho espiritual para combater a praga do enrijecimento.

Nada é absolutamente único, nada, nem a ideia de Deus. Se você está com dor de dentes, você deve procurar o trabalho de um bom dentista como uma expressão de Deus, porque se contar somente com Deus sem a Sua expressão como o trabalho de um bom dentista, a dor de dentes só vai piorar. Se você procurar a "palavra" de Deus apenas em um livro vai ficar cego e surdo quando Deus se manifestar como um professor, um conselheiro, um advogado ou um médico.

E, muitas vezes, a palavra de Deus está em lugares onde nunca imaginaríamos encontrar.

A Liberdade para Crescer

Essa liberdade é fundamental para o crescimento. Os medos de condenações eternas, ou de estar desrespeitando a própria religião, ou diminuindo alguma Divindade ou o Guru, muitas vezes medos inconscientes, frutos de um enrijecimento espiritual, matam a liberdade, sufocam o indivíduo e o fazem buscar a liberdade pela negação da espiritualidade como um todo.

A liberdade espiritual pra descrer, duvidar, reclamar de tudo o que é Divino e espiritual, de tudo o que antes se tomou como realidade e hoje está sob a lente da crítica, é ferramenta indispensável para se caminhar. Quem tem medo de Deus ou de duvidar de Deus vai ter problemas para continuar progredindo.

Há alguns anos, quando comecei a navegar pela Internet e percebi que Sathya Sai Baba e seus milagres não passavam de embuste, fiquei decepcionado pois, aqui do Brasil, tomava Sai Baba como um santo lá na Índia.

Um de meus professores espirituais, a quem chamo de Swami Sorriso, me disse:

- Você não admirava um embusteiro, você admirava a Divindade na imagem que lhe fizeram deste homem, assim como uma mulher sonha com o amado nas novelas. Quando a novela acaba ela toma outro amado de outra novela. O amado não é um ator nem outro, nem os personagens, mas o conjunto de atributos que o coração da mulher toma como merecedor de seu amor. A novela do "Sai Baba" acabou, transfira o mesmo amor para outro mais digno, não há a menor necessidade de decepção.

Livres para Acrescentar

O enrijecimento de linhas indicativas do caminho, como o "Sai Baba" da minha experiência, é o motivo principal das pessoas mudarem de caminho ou de religião, negando todas as experiências anteriores. Somos livres para acrescentarmos linhas indicativas ao nosso caminho, o nosso caminho espiritual não é as linhas indicativas, nosso caminho espiritual se utiliza das linhas indicativas. A liberdade espiritual é uma dádiva para se encontrar a direção e continuar a caminhar, não há porque se sentar e ficar admirando as indicações do caminho, e muito menos demonizar um caminho para seguir outro como, em geral, fazem as pessoas que mudam de religião ou abandonam religiões completamente.

O cultivo da liberdade espiritual é, dentre todas as práticas espirituais, a mais fundamental para o bom andamento e evolução para adiante no caminho. A liberdade e não o medo é que lhe fará alcançar todas as ferramentas necessárias para progredir.





5 comentários.

Douglas disse...

Olá, Dudu,

Gostei muito de seu texto, rapaz. Já tem um tempo que acompanho seu blog, mas este texto em particular me tocou bastante.

Muito obrigado.

Douglas

Canto do Dudu - Dudu Lopes disse...

Eu também agradeço por seu comentário, bem estimulante.

O filme Samsara e o livro Sidharta de Herman Hesse são duas belas expressões artísticas que ilustram perfeitamente a necessidade da liberdade espiritual.

Um abração de seu amigo,
Dudu.

Douglas disse...

Obrigado pelas recomendações, já estou procurando ambos, e irei ver com algumas pessoas que gosto. =)

Abração!

Douglas disse...

Agora que eu vi que já tinha um link no post =)

Valeu!

Canto do Dudu - Dudu Lopes disse...

Bom divertimento! :)

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